Os produtores rurais conseguiram ontem romper uma barreira importante no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Obtiveram decisão favorável dos ministros da 4ª Turma para que as dívidas constituídas como pessoa física possam ser incluídas nos processos de recuperação judicial. Foi a primeira vez que a Corte analisou o tema.
O julgamento está sendo considerado como um marco para o setor. A questão foi definida no último voto e gerou discussões acaloradas entre os ministros. O placar final ficou em três a dois.
A questão é importante e gerou muito debate porque o Código Civil permite aos produtores rurais atuar como pessoa física ou empresa. Só que a Lei de Recuperação Judicial e Falências (nº 11.101, de 2005) tem como regra geral que somente aqueles com cadastro na Junta Comercial e no mínimo dois anos de atividade podem ter acesso ao processo de reestruturação.
Uma minoria de produtores, no entanto, atua como empresa. De acordo com o IBGE, em 2017 apenas 97,5 mil de um total de 5 milhões de produtores rurais no país tinham CNPJ.
O caso analisado pela 4ª Turma envolve o Grupo JPupin, de Mato Grosso (REsp nº 1800032). A empresa pediu para entrar em recuperação judicial no ano de 2015 – poucos dias depois do cadastro na Junta – e não conseguiu. O pedido foi aceito em uma segunda tentativa, no ano de 2017, depois de passados os dois anos exigidos de inscrição.
Restou, no entanto, a discussão se as dívidas que foram contraídas como pessoa física poderiam ser incluídas no processo. As dívidas da empresa somam cerca de R$ 1,3 bilhão e praticamente tudo foi constituído quando José Pupin, um dos maiores produtores de algodão do país, e a sua esposa, Vera Lucia, exerciam a atividade como pessoa física.
O julgamento foi iniciado em junho e retomado ontem, com o voto-vista do ministro Luis Felipe Salomão. Havia, até então, somente o voto do relator, Marco Buzzi, e do ministro Raul Araújo.
O relator havia negado o pedido do JPupin e limitado o processo de recuperação ao cadastro na Junta Comercial. Um dos argumentos foi o de que a partir desta data teria sido criado um novo regime jurídico, com condições diferentes das estabelecidas na época em que credor e devedor – na condição de pessoa física – fecharam negócio.
Já o ministro Raul Araújo entendeu diferente. Ele abriu divergência para permitir a inclusão de todas as dívidas no processo. Para Araújo, o registro na Junta é “meramente declaratório”. A atividade econômica, frisou, permaneceu a mesma antes e depois do cadastro. Ou seja, quem emprestou dinheiro, mesmo que na condição de pessoa física, sabia que estava tratando com um produtor rural.
O ministro Luis Felipe Salomão proferiu um longo voto na sessão de ontem e acompanhou a divergência. Ele abordou os princípios e a finalidade da recuperação judicial e tratou sobre a atividade do produtor rural. Para ele, a Lei de Recuperação estabelece como requisito o cadastro na Junta Comercial somente como critério de acesso ao processo.
“Não exige a inscrição na Junta pelo prazo de dois anos, apenas que exerça a atividade de forma regular por dois anos”, disse, acrescentando que, no seu entendimento, o cadastro, por si só, não efetiva a qualidade do comerciante. “Empresa é quem promove a circulação de bens e serviços.”
Salomão classificou ainda como “terrorista” a ameaça de bancos e tradings que financiam o agronegócio e que vinham afirmando nos últimos dias que decisão favorável aos produtores poderia diminuir o crédito e elevar as taxas de juros.
O voto do ministro Luis Felipe Salomão acabou provocando um debate acalorado com o ministro Marco Buzzi. O relator disse que o Grupo JPupin procurava “malabarismo interpretativo” e que o STJ não podia praticar o que chamou de “ativismo judicial”. “Não se pode permitir ao grande devedor que se valha dos dois mundos. Os benefícios da pessoa física para atrair o crédito e mais adiante utilizarse da proteção da pessoa jurídica”, afirmou.
Luis Felipe Salomão não gostou do que ouviu e revidou. “Malabarismo a quem? Por qual ângulo? Eu não fiz malabarismo. Aqui tem uma posição que defende exclusivamente bancos e tradings e outra que defende o direito subjetivo conquistado pela lei para se obter a recuperação, que é um benefício que faz preservar empregos e o sistema da agricultura”, disse.
A ministra Isabel Gallotti votou na sequência e acompanhou o voto do relator – provocando um empate de dois a dois e deixando o julgamento ainda mais tenso. A decisão se deu, então, com o último voto, proferido pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, que acompanhou a divergência e formou a maioria para permitir a inclusão de todas as dívidas no processo de recuperação do Grupo JPupin.
Representante da empresa no caso, o advogado José Luis Finocchio Junior, do escritório Finochio & Ustra, afirmou ao Valor, no fim do julgamento, que ficou claro com a decisão do STJ “que o fato de o produtor atuar como pessoa física não significa que ele não seja empresário”. “O STJ vem pacificar as diversas divergências que existem nos tribunais estaduais. Em São Paulo, por exemplo, já temos decisões favoráveis aos produtores. Mas em outros Estados não”, afirmou.
Fonte: Valor Econômico.